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Análise: Noé

Eu acho interessante saber que Noé é um filme que o estúdio considerou arriscado em todas as frentes possíveis. Eles originalmente tiveram o medo mais tradicional de que católicos fervorosos iriam se revoltar contra as liberdades que o filme toma em relação às escrituras interpretadas pela igreja, e que haveria alguma tentativa de boicotar o filme. Houve até discussões sobre a possibilidade de se reeditar o filme para deixá-lo mais de acordo com a versão convencional, algo a que o diretor Darren Aronofsky se opôs, levando assim ao lançamento para o cinema de sua visão original. E, mais curiosamente, houve o medo (aparentemente justificado, se você começar a ler os comentários se espalhando na internet sobre o filme) do filme também ser boicotado por ateus, que esnobariam o conceito de um filme baseado em uma história religiosa, independentemente de como ela fosse abordada, como uma das muitas tentativas que ateus fervorosos realizam hoje em dia de usar qualquer coisa como um dedo do meio entusiástico para quem crê em algo diferente deles. Isso chega a ser irônico, e levanta novamente a questão de qual é a diferença entre um religioso fanático e um ateu fanático, quando ambos tentam impor suas opiniões sobre o resto do mundo e ridicularizam qualquer um que discorde deles.

Enfim.

Noé é o mais novo filme de Darren Aronofsky, conhecido por sucessos cults como Pi (o filme bom e complexo de 1998, não aquele demo de efeitos visuais de duas horas de duração mal segurado por uma história de 2012), Requiem Para um Sonho, Cisne Negro, e Fonte da Vida. Ele conta a história bíblica que provavelmente é mais conhecida mundialmente depois de Jesus: Noé ouve de Deus que vai haver um dilúvio para purificar o mundo, ele constrói uma arca para preservar um casal de todos os animais, etc, etc. A novidade aqui é o ângulo pelo qual se analisa a história, que na minha opinião é não só extremamente interessante, como torna Noé provavelmente meu filme favorito de Aronofsky até agora.

Uma das coisas que fica mais clara é que o filme está ciente de toda a controvérsia que provavelmente irá causar com o público, e em vez de tomar a saída fácil e ignorar o problema, ele o ataca de frente. Em um determinado ponto do filme, Noé, interpretado por Russell Crowe, conta a versão que o filme interpreta do Gênesis, em seu estilo que mistura mitologia, fantasia e os livros apócrifos da Bíblia, e o resultado é uma mistura incrível de ciência e religião, onde uma montagem exibe a criação do universo, da Terra e a evolução das espécies de uma forma que poderia ter sido retirada de um documentário do Discovery Channel, enquanto a narração de Noé acompanha os eventos com trechos da Bíblia. Isso é uma abordagem extremamente inteligente, tratando os textos como alegoria em vez de fato, o que não é nem a idolatração incondicional dos religiosos extremistas, nem a atitude dismissiva da qualidade literária e imaginativa que é fornecida pelos ateus extremistas.

Neste filme, uma história clássica bíblica se junta a um espetáculo visual grandioso que remete em estilo ao filme dos Dez Mandamentos de Cecil B. DeMille com Charlton Heston. Houve uma época em que isso era o pão com manteiga das megaproduções hollywoodianas. Sério, você já reassistiu Os Dez Mandamentos recentemente? Porque as liberdades tomadas com o material são insanas, DeMille basicamente pegou a moldura da do Êxodo e usou como pretexto para fazer um filme sobre homens sarados, mulheres bonitas, rios de sangue, bolas de fogo, mares abrindo… basicamente, com todas as decapitações, demônios, gigantes, orgias, dragões que existem ao longo da Bíblia, não existe razão para não fazer filmes sobre ela. A única razão pela qual esse poço secou nas últimas décadas é porque a ascensão da moralidade organizada pela mídia finalmente conseguiu conter os desvios burocráticos que estúdios usavam como justificativa para colocar o que quiserem nos filmes (era muito mais fácil aprovar nudez e outros elementos adultos para serem divulgados em um filme bíblico do que em outros gêneros, se os criadores dissessem que o filme estava tentando se manter fiel às escrituras).

De qualquer forma, o assunto abordado pelo filme também tem a sorte de possuir um pouco mais de espaço para respirar sob a visão religiosa, pelo menos em certos setores: embora a maioria dos elementos da Bíblia passados a partir de Abraão sejam considerados fato quase unanimemente por todas as religiões bíblicas, as coisas são muito menos claras no que concerne o período anterior ao dilúvio, abrangendo não apenas a Arca de Noé, mas também o Gênesis, a queda de Lúcifer, o Jardim do Éden, Adão e Eva, Caim e Abel e assim por diante. Enquanto estudiosos mais fervorosos mantêm esses trechos como tão reais quanto os outros, muitos outros, incluindo líderes religiosos modernos, abordam esse material como sendo estritamente metafórico, algo propagado ainda mais pela disponibilidade atual que ferramentas como a internet fornecem dos textos apócrifos (textos bíblicos não-canônicos, ou seja, não reconhecidos como adequados para a versão sanitizada da Bíblia que costuma ser divulgada), incluindo o livro de Enoch e os Pergaminhos do Mar Morto, que continham versões realmente antigas de história bíblicas. A Arca de Noé dos apócrifos é extremamente diferente da versão simples de um velhinho bondoso salvando a família dela e um monte de bichinhos de uma chuva forte. Várias versões descrevem uma Terra pré-histórica que é completamente alienígena ao nosso mundo atual, onde anjos e demônios caminham pela terra, homens praticam magia e vivem centenas de anos, e gigantes, monstros, e semideuses chamados Nephilim vagavam a Terra.

Enfim.

A razão pela qual eu digo isso tudo é porque a abordagem que Aronofsky toma em Noé pode ser vista por muitos como apenas uma tentativa de transformar um texto bíblico em um Blockbuster, adicionando monstros e explosões, quando na verdade essa é uma versão que tem mais a ver com a história original. Também existem liberdades tomadas para adicionar alguns subtextos ambientalistas que funcionam muito bem na mensagem geral do filme em relação à postura que o protagonista tem com o resto da humanidade: os humanos pecadores comem carne por achar que os torna mais fortes, minam a terra até extrair todos os seus recursos, guerream e dobram a natureza para fazer seus desejos, enquanto que Noé e sua família são implicitamente vegetarianos e sabem como viver de forma mais equilibrada. E a ideia é de que a atitude do resto da humanidade está matando o planeta, tornando-o uma terra morta. Puxa, eu me pergunto se tem alguma mensagem aí no meio.

E eu devo admitir, o estilo estético do filme é absurdamente incrível. Aronofsky já provou no passado que ele sabe lidar bem com fotografia, mas Noé ultrapassa praticamente todos os seus trabalhos anteriores. Curiosamente, a parte que é menos explorada visualmente, quando você analisa em termos de tempo de filme, é justamente a parte com a qual as pessoas são mais familiares: os animais em si. Ah, eles aparecem chegando até a arca, com certeza, em cenas visualmente incríveis, mas todos simplesmente entram na arca e são postos para dormir com ervas por Noé e sua família. Em um ponto por volta da metade do filme, Noé e um grupo de anjos caídos estão defendendo a arca dos humanos pecadores que querem invadí-la, e é impossível não sentir uma oportunidade perdida de fazer alguns animais ajudarem, no estilo Crônicas de Nárnia.

No entanto, logo fica claro que esse não é o foco do filme. A partir do momento em que o dilúvio realmente começa, fica evidente que o tema principal do filme é explorar o decaimento psicológico de um ser humano tentando interpretar as intenções de uma força maior. E se você conhece os trabalhos anteriores de Aronofsky, você sabe que ninguém faz decaimento psicológico melhor do que ele. Deus nunca fala pessoalmente com Noé, no estilo árvore em chamas de Moisés. Em vez disso, a comunicação é feita por meio de alucinações em sonhos, que Noé deve interpretar por conta própria. Seria fácil cair ou na linha de “este homem está em uma linha direta com Deus” ou “este home é maluco”, mas aqui, é basicamente uma mistura das duas coisas, como se realizar as ordens de um ser todo poderoso cósmico seja algo tão acima da compreensão humana que você começa a gradualmente perder sua integridade mental e sua noção de bom senso, e gradualmente assume uma postura niilista que pode ser perigosa. E embora o filme possua uma quantidade considerável de cenas de ação, uma vez que a arca é fechada, o drama principal é o da família de Noé tendo que lidar com a possibilidade de que a devoção dele para com sua interpretação dos sonhos acabe o tornando mais perigoso do que a enchente lá fora. É uma virada praticamente genial: por mais da metade do filme, o público é levado a torcer pelo protagonista que tem como objetivo se garantir que todo o resto da humanidade morra por causa de seus pecados, apenas para na segunda metade dar uma virada de perspectiva e lembrar as pessoas que, de certo ponto de vista, esse cara é um psicopata.

No fim das contas, Noé é um filme corajoso, interessante, bizarro, e disposto a correr riscos de uma forma que não se vê muito hoje em dia. Não existe nada recente igual a ele, e eu definitivamente recomendo.