Sumindo no Tempo – Capítulo III – O Duelo

Estão querendo me matar.

É algum ano na Inglaterra da época do cavalheirismo. Eu me embebedei em uma festa e acabei dando em cima de uma mulher comprometida. Agora, o marido dela me desafiou para um duelo de espadas. Tenho pena do pobre coitado. Ele acha que eu vou morrer. Isso é algo que eu já almejo há muito tempo, mas que nunca vou conseguir. Eu não posso morrer. Estou condenado a viver para sempre.

Não é nem mesmo na questão de não envelhecer quando estou fora da minha época. O tempo simplesmente não quer acabar com o meu sofrimento. Ele gosta de me torturar. Gosta de me ver sofrendo, implorando pela morte, apenas para me fazer escapar dela de novo, e continuar fadado a viver em um Universo onde ninguém me quer, e onde não há mais mistérios para eu desvendar.

Eu não morro, porque o tempo não deixa. Toda vez que alguém tenta me atacar, e o ferimento é fatal, o tempo anda em sentido reverso, até que eu possa impedir isso. Não é algo que eu tenha controle sobre. Simplesmente… acontece. Como o Sol nascendo e se pondo no horizonte todos os dias. É um fenômeno sobre o qual eu sou impotente.

Eu me lembro um pouco da festa. Consigo me lembrar de ter tomado um monte de vinho, e ter caído no meio da sala de estar da mansão. Então, me lembro de me levantar, tonto, berrando coisas como “Lutem contra o Tempo!”, “O Universo quer nos fazer sofrer!”, e outras piores. Me lembro dos convidados rindo da minha cara, me achando um retardado mental. De eu me levantar de uma poça de álcool e vômito, andar até a mulher do anfitrião, e beijá-la na boca. Me lembro do anfitrião berrar feito um louco, querendo me matar ali mesmo, enquanto os convidados o seguravam, dizendo que aquela não era a índole de um cavalheiro, que eu merecia um luta justa. O anfitrião berrando que eu não merecia justiça, e os convidados dizendo que a reputação dele dependia deste tipo de coisa. Finalmente, o homem concordou e marcou um duelo ao entardecer.

Ele deve ter um cargo bem alto no escalão da burguesia, pois mandou cercar a cidade com guardas, para me impedir de fugir. Que idiota. Eu não vou fugir, porque não preciso. Eu só não me transportei ainda porque estou muito bêbado, e vai Deus saber onde eu vou parar se fizer isso sem pensar direito. Da última vez, eu apareci no meio de uma câmara de gás em Auschwitz. Confesso que os alemães devem ter ficado mais surpresos do que eu, afinal foram eles que viram um homem se materializar e desmaterializar do nada bem na frente deles. Não gosto muito de me lembrar disso.

Já está quase na hora do duelo. Os sinos vão tocar daqui a pouco. Tem um homenzinho atarracado dizendo que o meu adversário tinha o direito de escolher as armas, e escolheu espadas. Ele me entrega um florete bem simples, sem nada rebuscado no punhal. Eu experimento a arma durante alguns instantes, me acostumo com o peso e a aerodinâmica.

Os sinos tocam.

Meu adversário sobe a colina em que estou, segurando seu próprio florete, cheio de decorações de ouro no punhal. Ele está realmente querendo acabar comigo, posso ver bem. O homem atarracado é quem vai fazer às vezes de juiz. Ele espera eu e o anfitrião fazermos as honras, então tira um lenço do bolso da sobrecasaca, e deixa cair no chão, anunciando o início da luta.

O homem vem para cima de mim como um furacão, jogando golpe após golpe de espada em cima de mim. Eu defendo todos com precisão. Não preciso nem mesmo me esforçar, pois a adrenalina está deixando o mundo ao meu redor mais lento. Ou talvez seja eu que estou mais rápido, e todo o resto continua na mesma velocidade de sempre. Os golpes de espada dele são tão lentos para mim, que eu consigo colocar minha espada na posição vários segundos antes dele desferir o golpe.

Mas de repente, os golpes dele começam a ficar mais rápidos. Tem algo errado. Minhas habilidades estão falhando. Droga, o álcool! Eu não consigo me concentrar o suficiente quando estou embriagado. A partir de agora, vou ter que contar apenas com os meus reflexos. Meu inimigo continua furioso, e não para de tentar enfiar a espada em mim.

Até que ele consegue. No meu pescoço.

Mas a espada não entra. E também não sai. Não porque esteja entalada, mas porque o tempo congelou. Como eu imaginei que iria. O florete está parado, parcialmente enfiado na minha jugular, mas sem causar danos, porque o tempo não está correndo para isso. E não vai correr para nada. Esse é o problema.

Eu já sabia que isso ia acontecer, mas toda vez que tentam me matar, eu não me transporto, esperando que pelo menos dessa vez, o Universo me deixe morrer. Mas ele não deixa. Minha sina é viajar pelo tempo pela eternidade, sozinho, detestado, tratado como um louco. É claro que dessa vez, o álcool também contribuiu em fazer com que eu não consiga me transportar. E o pior é que eu tenho que ficar sóbrio para poder voltar o tempo, para antes de a espada me atingir. Que porcaria.

Tudo está parado, menos eu. Meu sangue ainda corre pelas veias, meu cérebro ainda pensa, meu coração ainda bate. Eu sou um ser humano no meio de um monte de estátuas. Ou talvez eu não seja um ser humano. Talvez eu seja algo maior, uma criatura mais desenvolvida, com habilidades tão peculiares que não podem ser consideradas humanas. Ou talvez eu seja algo pior, a escória da humanidade, que como punição por sua insignificância ganhou o castigo da imortalidade e da solidão.

Já estou sóbrio o suficiente para me transportar, mas quero desesperadamente que a espada fure meu pescoço de ponta a ponta. Tento avançar o tempo. Nada. Que droga. Vou ter que recuar mesmo. Mas não vou voltar para essa luta. Que se dane o anfitrião, se ele se espantar com o fato de eu ter evaporado assim que ele me acertou. Eu não vou me preocupar em preservar a sanidade de alguém que tentou me assassinar. Não, senhor.

Eu me concentro, e começo a me transportar. Sinto a espada dele saindo do meu pescoço, ele recuando pela colina, os sinos deixando de bater, eu entregando a arma para o juiz, indo para a mansão, brigando com o anfitrião, beijando a mulher dele na boca. Seria muito interessante se essa fosse a ordem natural das coisas, pois isso significaria que eu venci a luta e consegui a mulher dele. Mas não é assim…

Tem algo errado.

Não estou conseguindo controlar o quanto eu me transporto. Está indo rápido demais. Vejo a mansão do homem quando ainda estava sendo construída, depois uma colina vazia, que com a erosão reversa vai ficando mais acentuada. Criaturas estranhas andam pela colina, depois somem, assim como a grama. A colina fica rochosa, coberta por água. Depois vai esquentando, até ficar cheia de lava. Então, não há mais lava. Nem colina. Nem chão, estou flutuando pelo espaço, enquanto vários borrões iluminados giram à minha volta. Eles começam a se acumular todos no mesmo lugar, e fazem um clarão imenso.

Silêncio.

Onde estou?

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  1. Pelo Sorvete! Tenho a impressão que o próximo capítulo será um grande Bang em nossas conciências

  2. hum… não sei ao certo agora se é conciência ou consciência…

  3. Descubra e me avise

  1. Pingback: Philip & o Duelo « Diego Machado: A recompensa está no fazer.

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